A Sociedade Brasileira de Toxicologia (SBTox) vem, mais uma vez, a público reiterar que as políticas públicas de segurança no trânsito devem ser fundamentadas em evidências científicas robustas, priorizando a identificação de condutores sob influência recente de substâncias psicoativas.
A aprovação do Projeto de Lei nº 3965/2021, que torna obrigatório o exame toxicológico de larga janela de detecção para a emissão de novas Carteiras Nacionais de Habilitação (CNHs), contraria as melhores práticas internacionais e as recomendações da SBTox. A prevenção ao uso de drogas tem sido tema recorrente ao longo dos anos, com inúmeros projetos promovidos por instituições governamentais e privadas.
Atualmente, observa-se uma equivocada tentativa de associar exames toxicológicos de larga janela — como análise de cabelos e unhas — à prevenção de acidentes de trânsito. No entanto, tais exames, além de onerosos, não possuem eficácia comprovada na redução de acidentes e não encontram respaldo nas melhores práticas internacionais. Nos Estados Unidos, Austrália e nações europeias, o monitoramento de substâncias psicoativas no trânsito é pautado na detecção de uso recente, utilizando matrizes biológicas como saliva e sangue, e realizadas por meio de abordagens aleatórias ou sob suspeita.
A priorização da detecção de consumo recente, e não do histórico de uso, é essencial, uma vez que somente a exposição aguda a drogas de abuso correlaciona-se diretamente com o risco aumentado de acidentes. A análise de cabelos, pelos e unhas detecta apenas exposições passadas, não refletindo o estado atual do condutor no momento da direção.
Os dados disponíveis corroboram essa análise. Após a implementação da Lei Federal 13.103/2015, que instituiu o exame de larga janela para motoristas profissionais, apenas 1,58% dos mais de 1,8 milhão de testes realizados até 2017 tiveram resultado positivo — sem sequer detalhar as substâncias detectadas. Em contrapartida, estudos nacionais que utilizaram amostras de fluido oral e urina, capazes de refletir o uso recente, encontraram taxas de positividade substancialmente maiores, entre 5,2% e 9,3%.
A alegação de que a obrigatoriedade desse exame reduziu os acidentes em mais de um terço em seis meses não se sustenta em metodologia robusta e não encontra respaldo na literatura científica internacional. Nas nações que alcançaram reduções expressivas de acidentes, isso ocorreu apenas após anos de políticas públicas integradas, baseadas em educação, fiscalização eficaz e intervenções fundamentadas em ciência.
Portanto, não há qualquer evidência científica que comprove que a obrigatoriedade do exame toxicológico de larga janela de detecção tenha impacto significativo na redução de acidentes de trânsito no Brasil — país que, isoladamente, adota essa medida como política pública.
Sob o ponto de vista jurídico, esse exame não atende ao objetivo do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que prevê medidas administrativas para quem dirige sob efeito de substâncias psicoativas. O teste de larga janela não distingue o uso pretérito daquele que coloca em risco a segurança no trânsito, ou seja, o uso concomitante à direção.
Além disso, o custo elevado do exame — entre R$ 200 a R$ 400 por teste — impõe ônus desproporcional aos trabalhadores. A expansão dessa obrigatoriedade, como propõe o PL nº 3965/2021, amplia ainda mais esse impacto econômico sobre a população, sem de novo gerar ações positivas em termos de segurança no trânsito.
As principais diretrizes internacionais e revisões sistemáticas reforçam que a análise de matrizes de queratina (cabelos, pelos corporais, unhas) NÃO É RECOMENDADA PARA FISCALIZAÇÃO DE TRÂNSITO. Seu uso permanece restrito a contextos forenses específicos, como o monitoramento de abstinência em programas de reabilitação, não sendo apropriado para aferir risco imediato no ato de dirigir. O consenso científico internacional é claro: a detecção de uso recente, por meio de fluido oral e sangue, é a única abordagem cientificamente válida para fiscalização rodoviária.
Sob os aspectos ético, legal e social, a implementação de políticas dessa natureza não pode ocorrer sem uma ampla discussão pública, técnica e científica. A construção de uma política de trânsito efetiva e baseada em evidências pressupõe, antes de tudo, investimento em educação crítica, emancipadora e cidadã.
Assim, recomendamos que tal exigência SEJA REVISTA à luz de critérios científicos atualizados, com escuta técnica qualificada dos profissionais da toxicologia, a fim de alinhar políticas públicas a práticas laboratoriais responsáveis, éticas e eficazes.
Por fim, a Sociedade Brasileira de Toxicologia (SBTox) reitera seu compromisso com a ciência, colocando-se à disposição para colaborar na construção de políticas públicas verdadeiramente eficazes, baseadas em evidências e alinhadas às melhores práticas internacionais, com vistas à efetiva redução de acidentes e à proteção da vida no trânsito.
Atenciosamente,
Sociedade Brasileira de Toxicologia (SBTox)
Biênio (2024–2026)